
Vamos agora mergulhar na análise de partes selecionadas deste livro visionário, que continua a ressoar até os nossos dias.
Para tanto, selecionei os capítulos XXVII a XLII, do Livro Primeiro, onde, em defesa do sexo feminino e se contrapondo à afirmação dos homens de que as mulheres são dotadas de fraca capacidade intelectual, Christine de Pizan questiona à Dama da Razão se seria possível que Deus tivesse concedido às mulheres grandes virtudes, inteligência e saber.
Em resposta, a Dama da Razão lhe diz que se as meninas fossem enviadas às escolas e ensinadas as ciências, como fazem com os meninos, certamente que aprenderiam e compreenderiam as sutilezas de todas as artes e todas as ciências tão perfeitamente quantos eles.
No diálogo, identificamos duas questões essenciais: a primeira aborda o confinamento das mulheres à esfera doméstica; enquanto a segunda trata das desigualdades e obstáculos impostos pelos homens para impedir que as mulheres assumissem tarefas consideradas masculinas e tivessem acesso à educação.
O texto também nos apresenta uma importante reflexão no que diz respeito ao fato de que o conhecimento não está diretamente ligado ao gênero, mas, sim, ao fato de determinado indivíduo possuir acesso à cultura e à educação.
Nesse contexto, a Dama da Razão ilustra essa premissa ao apresentar o arquétipo dos homens dos campos ou montanhas, cuja simplicidade os assemelha mais a seres animalescos. Em outras palavras, mesmo sendo “homens”, essa rusticidade os privam do verdadeiro domínio do conhecimento, tornando-os mais parecidos com animais do que com sábios.
Na sequência, a Dama Razão apresenta algumas mulheres de profundo saber e de grandes faculdades intelectuais a fim de demonstrar a capacidade feminina de alcançar as altas ciências, assim como os homens.
Ela começa falando da jovem e nobre Cornifícia, que abandonou todas as atividades femininas para se dedicar completamente ao estudo, tornando-se uma grande poetisa.
Romana Proba, de Roma, por sua vez, se dedicou profundamente aos estudos e conseguiu aprender as sete artes liberais, tornando-se uma grande poetisa, particularmente em relação aos estudos dos textos em versos.
Safo, jovem da cidade de Mitilena, dominava numerosas artes e ciências. Produziu diversas obras, livros e poesias, tendo inventado vários gêneros líricos e poéticos.
A autora também lista algumas mulheres da mitologia. A primeira é Montoa, uma mulher das ciências, dominava a piromancia, ou seja, a arte de ler o futuro através do fogo.
Já Medeia era muito sábia nas artes e ciências. Ela conhecia as propriedades das plantas e todos os sortilégios possíveis. Como ela, aparece Circe, mulher que conhecia a arte da magia.
Nessa toada, Christine de Pizan pergunta à Razão se ela sabia de alguma mulher que tivesse descoberto uma ciência até então desconhecida.
Em resposta, a Dama da Razão lhe apresenta algumas nobres mulheres, como Nicostrata, profunda conhecedora da literatura grega. Ela foi a primeira a promulgar leis, tendo inventado um alfabeto original, com a formação das palavras, a distinção entre as vogais e consoantes e toda a base da gramática.
Outra mulher de grande inteligência foi Minerva, que inventou algumas letras gregas, chamadas caracteres, assim como os números. Ela foi a primeira a pensar em tosquiar a lã das ovelhas, inventou a tecelagem, descobriu como tirar óleo das olivas, dentre outros.
Além disso, Minerva descobriu a arte e a técnica de fabricar carros e charretes para transportar toda espécie de coisas de um lado para outro. A lista de suas invenções é demasiadamente grande, como fabricação de couraças, armaduras de ferro e aço, flauta doces, flauta transversal, trompete e outros instrumentos de sopro.
A Rainha Ceres, de engenhosa sabedoria, foi a primeira que inventou a ciência e as técnicas da agricultura e os utensílios.
Já Isis, rainha do Egito, inventou a arte da jardinagem e do cultivo das plantas, assim como um sistema de escrita simbólica que ensinou aos egípcios.
Mas, essas mulheres não foram as únicas, existiram outras, tais como:
- Aracne, que descobriu a arte de tingir a lã, tecer as estofas de alta linha e também de cultivar o linho e fazer a sua tessitura;
- Panfila, que descobriu a arte de retirar a seda dos bichos de seda, tingi-la e fazer lençóis;
- Tâmara, que foi uma inexcedível mestra na arte da pintura, assim como as pintoras Irene e Marcia;
- Semprônia de Roma, que se dedicava não apenas à literatura latina, mas sabia grego e escrevia de maneira brilhante, cantava e tocava diversos instrumentos.
Por fim, a Dama da Razão conclui que as mulheres são dotadas de grande inteligência, capazes de inventar, aprender e assimilar as ciências de maior utilidade e benefício para a humanidade e que, certamente, esses feitos não foram superados por nenhum homem.
O LEGADO INTELECTUAL
Essa obra vai muito além de ser apenas um mergulho em um texto literário medieval; é uma porta de entrada indispensável para quem deseja explorar a produção intelectual das mulheres ao longo da história.
Por meio de diálogos com figuras alegóricas, Christine de Pizan desafia preconceitos históricos e nos convida a apreciar o rico legado intelectual feminino, frequentemente negligenciado. Ao fazer isso, o livro não apenas oferece outra perspectiva, mas também nos leva a refletir sobre a importância da igualdade de gênero na educação e na sociedade.
Christine demonstra que o conhecimento transcende o gênero, destacando a influência vital do acesso à cultura e à educação.
Esta leitura nos encoraja a reconsiderar e valorizar a diversidade de vozes femininas que, ao longo dos séculos, moldaram nossa compreensão do mundo, promovendo uma visão mais inclusiva e justa da história.